Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

16 de fevereiro de 2016

Suméria: O homem- de- mel



Ele brotou, deitou botões, é alface à beira d’água plantada,
meu quintal bem fornecido da planura…, meu favorito do seio,
meu grão luxuriante no seu sulco – ele é alface à beira d’água plantada,
minha macieira carregada de seu fruto até ao cimo – ele é alface à beira
d’água plantada.

O «homem-de-mel», o «homem-de-mel» adoça-me sem cessar,
meu senhor, o «homem-de-mel» dos deuses, meu favorito de sua mãe,
cuja mão é mel, cujo pé é mel, adoça-me sem cessar;
cujos membros são doce mel, adoça-me sem cessar.

Meu adoçador do humbigo…, meu favorito de sua mãe,
meu… de coxas mui esbeltas, ele é alface à beira d’água plantada.

É uma bal-bal-e de Inanna.



Suméria
Trad. José Nunes Carreira
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google 

Charles Baudelaire: Um hemisfério numa cabeleira



























Deixa-me respirar longamente, longamente, o aroma dos teus cabelos,
neles mergulhar todo o meu rosto, como um homem sedento na água de
uma nascente, e agitá-los na minha mão como um lenço aromático, para
sacudir recordações no ar.
          Se pudesses saber tudo aquilo que vejo! tudo aquilo que eu sinto!
tudo aquilo que ouço nos teus cabelos! A minha alma viaja por sobre o
perfume como a alma dos outros homens sobre a música.
         Os teus cabelos levam um sonho inteiro, cheio de velames e de mastreações;
levam grandes mares de monções que me transportam para encantadores climas,
onde o espaço é mais azul e mais profundo, de atmosfera perfumada pelos frutos,
pelas folhas e pela pele humana.
         No oceano da tua cabeleira avisto um porto irrompendo em cantos
 melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todos os
formatos recortando arquiteturas finas e complicadas num céu imenso em
que preguiça o eterno calor.
Nas carícias da tua cabeleira reencontro as demoras das longas horas
passadas num divã, no quarto de um belo navio, embaladas pelo rolar
imperceptível do porto, entre os vasos de flores e os cântaros refrescantes.
         No lar ardente da tua cabeleira, respiro o aroma do tabaco mesclado
em ópio e açúcar; na noite da tua cabeleira vejo resplandecer o infinito do
horizonte tropical; nas margens sedosas da tua cabeleira embriago-me com
os aromas misturados do almíscar, do alcatrão e do óleo de coco. 
         Deixa-me morder demoradamente as tuas tranças pesadas e negras.
Quando mordisco teus cabelos elásticos e rebeldes, julgo estar a
mastigar recordações.


Charles Baudelaire
França, Paris 1861-1867
Trad. Filipe Jarro
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

Algernon Charles Swinburne: Amor e Sono





























Deitado a dormir entre os afagos da noite
Vi o meu amor debruçar-se sobre o meu leito triste,
Pálida como a mais escura folha do lírio ou corola
De pele macia e escura, o pescoço nu para ser mordido,

Transparente demais para corar, tão quente para ser branca,
Apenas de uma cor perfeita sem branco nem vermelho.
E os lábios abriram-se lhe-amorosamente e disseram -
Nem sei bem o quê, excepto uma palavra - Deleite.

E a face dela era toda mel na minha boca,
E o corpo dela todo pasto a meus olhos;
Os braços longos e lentos, as mãos quentes de fogo,

As ancas frementes, o cabelo a cheirar a Sul,
Os pés leves luzentes, as coxas esplêndidas e dóceis
E as pálpebras fulgentes com o desejo da minha alma.



Algernon Charles Swinburne
Reino Unido 1837-1909
Trad. José Bento
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

Guerra Junqueiro: Regresso ao Lar























           
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d’astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh’alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, me vier buscar!



Guerra Junqueiro
Portugal, Freixo de Espada à Cinta 1850 - Lisboa 1923
Trad. Cecília Rego Pinheiro
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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D.H. Lawrence: Piano

























Suavemente, na penumbra, uma mulher canta para mim;
Fazendo-me voltar e descer o panorama dos anos, até que vejo
uma criança sentada debaixo do piano, na explosão do prurido das
            cordas
E pressionando os pequenos, suspensos pés de uma mãe que sorri
            enquanto ela canta.

Apesar de mim, a insidiosa mestria da canção
Atraiçoa-me fazendo-me voltar, até que o meu coração chora para
            pertencer
Ao antigo entardecer dos domingos em casa, com o inverno lá fora
E hinos na aconchegada sala de visitas, o tinido do piano o nosso guia.

Por isso agora é em vão que a cantora irrompe em clamor
Com o appassionato do grandioso piano negro. A magia
Dos dias infantis está em mim, a minha masculinidade
É desencorajada no fluxo da lembrança, choro como uma criança
           pelo passado.



D.H. Lawrence
Reino Unido, Eastwood 1885 – França, Vence 1930
Trad. Cecília Rego Pinheiro
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assírio & Alvim

Georg Trakl: Élis (3ªversão)


1.
Perfeito é o silêncio deste dia dourado.

Sob velhos carvalhos
Apareces, Élis, imagem de paz com olhos redondos.

O seu azul espelha o sono dos amantes.
Na tua boca
Emudeceram os seus suspiros rosados

À noitinha o pescador puxou as pesadas redes.
Um bom pastor
Leva o rebanho pela orla da floresta.
Oh, que justos são, Élis, todos os teus dias!

Leve desce
Por muros desolados o silêncio azul da oliveira,
Morre o sombrio canto de um ancião.

Uma barca de ouro
Baloiça, Élis, o teu coração na solidão do céu.

2.
Um suave toque de sinos ecoa no peito de Élis
À noitinha,
Quando a sua cabeça se afunda na almofada negra.

Um veado azul
Sangra baixinho no mato de espinhos.

Uma árvore castanha ergue-se solitária;
Caíram dela os seus frutos azuis.

Sinais e estrelas
Afundam-se de mansinho no lago da tarde.

Para lá da colina chegou o inverno.

Pombas azuis
Bebem de noite o suor gelado
Que corre na fonte cristalina de Élis.

Eternamente, ressoa
Nos muros negros o vento solitário de Deus.




Georg Trakl
Áustria, Salzburgo 1887 – Cracóvia 1914
in Outono Transfigurado
Trad. João Barrento
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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Pablo García Baena: Dia da ira

Despe-me, já não tenho outra coisa.
Quase gelado o lábio de beijar tanta morte.
Retalha meu olhar, deixa os olhos sem lágrimas
como uma carne mísera, tépida para as moscas.
Sobre tua pedra estou, não vencido, amarrado:
fere e sob o turvo cano do sangue pereça
o impuro animal de cálido vagido,
pois ele amou a carne e seu comércio
e para ele o pranto foi carnal, como um medo
cobarde de pombas ainda implumes nas mãos
e a oração uma pétala entre os dentes manchada.
Raspa, arranca-me da língua o seu nome, se tens
no dia do rigor uns favos de doçura
e opera com teu longo bisturi de clemência
o coração, a entranha que não se fatigou
nem esqueceu no torpor das noites e do vinho
e que implacavelmente perseguias
pelas estreitas ruas da tristeza antiga.
Corta dos dedos sua teia de afagos
e deixa minhas mãos apalpar cegas e alheias
o tecido longo e frio da desilusão.
 Inerme sobre o mármore oiço o teu vento
de trompas levantadas à luz derradeira,
quando o anjo apaga a lucerna do tempo
e remove as ligaduras,
o sombrio aposento das urnas,
o buraco tão escuro, o cenotáfio…
Porque estou nu diante de ti e temo-te.



Pablo García Baena
Espanha, Córdova 1923
Trad. José Bento
in Rosa do mundo - 2001 poemas para o futuro
Editor: Assírio & Alvim
photo by Google

Muhammad Al-Maghut: Inverno



























como lobos em períodos de seca
crescemos por toda a parte
amámos a chuva
amámos o outono
um dia até pensámos
em enviar uma carta de agradecimento ao céu
com uma folha de outono como selo de correio
acreditávamos que as montanhas desapareceriam
os mares se dissipariam
apenas o amor seria eterno
de súbito separámo-nos
ela gostava de sofás compridos
e eu de longos navios
ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés
eu gostava de saltar e gritar nas ruas
e, apesar de tudo,
os meus braços vastos como o universo
estão à espera dela …




Muhammad Al-Maghut
Síria, Al-Salamiyah 1934 – Damasco 2006
trad. adalberto alves
in Rosa do mundo - 2001 poemas para o futuro
Editor:Assírio & Alvim
photo by Google

António Feijó: Hino à alegria


























Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.

Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante...

Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.

Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.

Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!

No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa,
Como chuva a cair numa planta abrasada,
A fornalha em que a Dor se transmuta em Beleza!

Pensar, é certo, eleva o espírito mais alto;
Sofrer torna melhor o coração; depura
Como um crisol: a chispa irrompe do basalto,
Sai o oiro em fusão da escória mais impura.

A Alegria é falaz; só quem sofre não erra,
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que O louve;
A Alma, na oração, desprende-se da terra;
Jamais o homem é vão diante de Deus que o ouve!

E contudo, — ilusão! — basta que ela sorria,
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar,
Vamos logo em tropel, no capricho do dia,
Como ébrios, evoé! atrás dela a cantar!

Mas se ela, de repente, ao nosso olhar se furta,
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso;
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta,
Que mal chega a doirar as cortinas do berço.

Às vezes, essa luz, de tão frágil encanto,
Vem ainda banhar certas horas da Vida,
Como um íris de paz numa névoa de pranto,
Crepitação, fulgor duma estrela perdida.

Então, no resplendor dessa aurora bendita,
Toma corpo a ilusão, e sem ânsias, sem penas,
O espírito remoça, o coração palpita
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas!

Mas efémera ou vã, a Alegria... que importa?
Deusa ingénua ou bacante, o seu riso clemente,
Quando, mesmo de longe, ecoa à nossa porta,
Deixa em louco alvoroço o coração da gente!

Momentânea ou falaz, é sempre um dom divino,
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer...
Pudesse eu celebrar teu louvor no meu Hino!
Momentâneo, falaz encanto de viver!

O teu sorriso enxuga o pranto que choramos,
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes!
Nesta sentimental língua que nós falamos,
Só a Dor e a Paixão têm acordes sublimes!



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
photo by Google

António Feijó: Elegia de Abertura

A minha Lira tinha uma corda:
Enquanto moço tanto cantei,
Que a pobre corda despedacei.

Agora, ás vezes, se a Musa acorda,
E quer de novo pôr-se a cantar,
Ninguém a corda pode emendar.

Era uma corda que só vibrava
Quando a minha alma toda chorava,
E tantas mágoas, tantas, cantei,
Que a pobre corda despedacei.

O Amor e as penas da Mocidade,
Quimera ou Sonho de cada dia,
Eram os temas que ela escolhia.

Porém um dia veio a Saudade,
D'olhos vidrados e humedecidos,
Poisar-lhe os dedos emagrecidos...

Então, vibrando, toda chorosa,
Sob esses dedos, brancos de cera,
Mais angustiada nunca gemera!

E uma alma nova tão dolorosa,
Com tanta mágoa nela ressoa,
Que um ai supremo despedaçou-a!

Desde esse instante, nas minhas penas,
Sem essa corda que me sustinha,
--Pobre Saudade! chora sozinha...

Manhãs de estio, tardes serenas,
Ocasos de oiro, nocturno céu,
Para os meus olhos, tudo morreu!

Mas a Saudade, no meu tormento,
Geme e soluça com tanta mágoa,
Que, a ouvi-la, os olhos enchem-se d'água,

E sem um grito, sem um lamento,
Minha alma vive na dor que a enleia,
Como uma aranha na sua teia...

A minha Lira tinha uma corda:
Enquanto moço tanto cantei,
Que a pobre corda despedacei.

Agora, ás vezes, se a Musa acorda,
E quer de novo pôr-se a cantar,
Ninguém a corda pode emendar...

A Mocidade não pensa em nada,
E a pobre corda vi-a quebrada
Quando tocava mais afinada...

A Mocidade não pensa em nada!



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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António Feijó: Hino à Solidão





























Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.

Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.

Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na Palavra,
Cantar no Som, flores na Cor, sorrir na Pedra!

Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.

Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.

E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
E em cuja criação o seu sangue palpita,
Que não há deus estranho aos orbes que formou.

Nem lutas, nem paixões: ideais serenidades
Em que o Tempo se esvai sob o encanto da Hora...
O passado e o porvir são ânsias e saudades:
Só no instante que passa a plenitude mora.

Sombra crepuscular, que a Noite não atinge,
Nem a Aurora desfaz: rosicler e luar,
Meia tinta em que a Alma abre os lábios de Esfinge,
E o seu mistério ensina a quem sabe escutar.

Mas então, inundando essa penumbra doce,
De não sei que sublime esplendor sideral,
Como se a emanação dum ser divino fosse,
Deixa no nosso olhar um reflexo imortal.

Na vertigem que a vida exalta e desvaria,
Pára alguém para ouvir um coração que bate
No seio mais formoso, o olhar que se extasia
Vê o mundo que nele em ânsias se debate?

É só na solidão que a alma se revela,
Como uma flor nocturna as pétalas abrindo,
A uma luz, que é talvez o clarão duma estrela,
Talvez o olhar de Deus, de astro em astro caindo...

E dessa luz, a flor sem forma, há pouco obscura,
Recebe o seu quinhão de graça e de pureza,
Como das mãos do artista, animando a escultura,
O mármore recebe a sua alma — a Beleza.

Se sofrer é pensar, na paz do isolamento,
Como dum cálix cheio o líquido extravasa,
A Dor, que a Alma empolgou, transborda em pensamento,
E a pouco e pouco extingue o fogo em que se abrasa.

Como a montanha de oiro, a Alma, em seu mistério,
À superfície nunca o seu teor revela;
Só depois de sondado e fundido o minério
Se conhece a riqueza acumulada nela.

Corações que a Existência em tumulto arrebata!
Esse oiro só se extrai do minério candente,
No silêncio, na paz, na quietação abstracta,
Das estrelas do céu sob o olhar indulgente...



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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