Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

24 de janeiro de 2015

Ana Luísa Amaral: Coisas de luz antigas

Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.


Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:


um namorado sem falar
de amor
(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)



Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi

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18 de janeiro de 2015

Ana Luísa Amaral: Que pode ser portátil (e trágico) o amor



Um romance de amor por esta noite
em lua nevoenta ― e uma máquina velha
de escrever. Ingénua e tão portátil,
de imensa melodia desigual.

Ah, o prazer do verso em movimento
lento, o til beijando em fogo a mancha
do papel que se arrepia ao longo
de mil gralhas. O sentimento mútuo

e vagaroso: o «um» feito com ele,
o «zero» a servir de ó, a letra que não sai,
desesperada, por culpa de algum pó,
que se intromete, negro de ciúme.

Agora, o xis em cima de palavra
moribunda de amor. Morreu. Qual trágica
Desdémona, morreu. Uma morte pujante
de sereia, com tinta longa e cheia,




e não desaparecendo-se vilmente
(Ofélia evanescente). Ah, o prazer
de linha de permeio, descalça,
toda nua, em premente desvio. O frio
que ela aqui faz, fingindo-se de frio
― na letra em desalinho ― o travessão
falhado no caminho, mas em perfeito lume.
E o regresso ao ciúme mais sublime:

voltar atrás na linha e repetir
o crime: acento muito grave e de
perfume que se tinha esquecido de nascer:
aparição agudamente bela.



Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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Eugénio de Andrade: SERENATA

Venho ao teu encontro a procurar,
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha,

Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.

Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços,  de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.

Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.


Eugénio de Andrade
Portugal (Castlo Branco) 1923-2005
in As palavras Interditas!
            Até Amanhã
Editor: Assirio & Alvim
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13 de janeiro de 2015

Eugénio de Andrade: A Mão



A mão
que no fundo da noite chama,

num sopro mais ligeiro
que o desejo

ou o cheiro
do feno quente ainda
da última gota de água,

a mão
esquece a árvore onde fez ninho

e vai pousar
entre o frio dos joelhos

devagar.





Eugénio de Andrade
Portugal(Castelo Branco) 1923-2005
in Obscuro Domínio
Editor: Assirio &Alvim
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Helder Moura Pereira: Eu não sabia que…

























Eu não sabia que sabia esta coisa já sabida:
contigo a vida, até o sexo, pode ser coisa divertida.
Sabia, afinal, ou não sabia, como qualquer personagem

do Livro das Façanhas, que mal abrisses
um pouco dos teus braços, eu iria, qual Ulisses,
atirar-me para dentro da tua imagem?

Agora esperei por ti décadas, séculos, todo um milénio
mas amanhã, se o dia se fragmentar como em mim,
tu já não serás o corpo que me deu oxigénio
e eu não voltarei a escrever um poema assim.


Helder Moura Pereira
Portugal 1949
in A tua cara não me é estranha – Assirio & Alvim
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Eugénio de Andrade: Até Amanhã




























Sei agora como nasceu a alegria
como nasce o vento entre barcos de papel,
Como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado
amanhecer de pássaros no sangue

E subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos no horizonte
onde o mar é divino e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.


Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in As palavras interditas,
            Até Amanhã
Editor: Assirio & Alvim

Eugénio de Andrade: CONTIGO



Acordo na manhã de oiro
entre o teu rosto e o mar.

As mãos afagam a luz,
prolongam o dia breve.

Entre o teu rosto e o mar
ninguém deseja ser neve.

Ninguém deseja o veneno
da noite despovoada.

Acorda-me a tua voz,
nupcial, branca, delgada.







Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in As Palavras Interditas
Editor: Assirio & Alvim
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Oscar Dias Corrêa: LASCÍVIA



Quero tê-la nos braços delirante,
Nesse calor que à carne dá o desejo,
Quero-a impetuosa, lúbrica, ofegante,
Insatisfeita ao beijo, ansiando o beijo!

Que você seja só e toda a amante,
Nada mais, nada, sem Rubor nem pejo...
Confusa, estranha, pálida, um instante...
É assim que a quero, e penso, e sinto, e vejo!

E tudo se dará num só momento,
Que durará o nada, o tudo, o nada,
E será a luz, a flor, a força, o vento!

Fará do agora toda a eternidade,
Fará da eternidade todo o agora,
E de nós dois fará uma só vontade!





Oscar Dias Corrêa
Brasil (Itaúna, MG) 1921,
              Rio Janeiro 2005             
in Antologia de poetas brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor:  Universitária Editora
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Oscar Dias Corrêa: Há Sete Anos...


Há sete anos é você pastora
Dos sonhos, ilusões e desenganos
Que marcaram minh'alma sofredora
Em vinte e sete longos e árduos anos.

Da vida, por você, esqueci, de outrora,
Cruéis embates, ásperos, insanos;
Isto lhe devo, se em meu peito mora
Ventura, e vivo sem temor e enganos.

Que outros sete, pois, e mais sete, e ainda
Sete mais, outros, muitos. Deus convenha
Juntos lutemos esta dura lida.

Para que, um dia, a glória amada e infinda,
Feliz de proclamá-la e vê-la eu tenha,
Pastora minha amada toda a vida!






Oscar Dias Corrêa
Brasil (Itaúna, MG) 1921
               Rio Janeiro 2005
in Antologia de poetas brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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12 de janeiro de 2015

Paulo Vanzolini: Valsa das três da manhã


Eu não bebo para esquecer,
bebo para lembrar.
Eu bebo e cambabeio e tenho você ao meu lado
é o meu instante de felicidade.
Vou andando na nebelina das ruas
conversando com você
cantigas da perdida felicidade.
Seu perfume bom se mistura
ao cheiro bom da madrugada
sua mão nem pesa no meu braço
mas seu contato é doce, doce
e o rumor do seu passo
é música, é música pura.

    Só não vejo você
     Mas não faz mal.
     Sei que você está a meu lado
     isso me basta
     e vou andando na nebelina, feliz,
     até cair.



Paulo Vanzolini
Brasil (São Paulo) 1924-2013
in Antologia de poetas brasileiros
Seleção: Mariazinhaa Congílio
Editora: Universitária Editora
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Alvarenga Peixoto: Jônia e Nise


Eu vi a linda Jônia e, namorado,
Fiz logo o voto eterno de querê-la;
Mas vi depois a Nise, e é tão bela,
Q
ue merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se, neste estado,
Eu não sei distinguir esta daquela?
Se Nise agora vir, morro por ela,
Se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

Mas ah! que esta me despreza, amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E aquela me não quer, por inconstante.

Vem Cupido, solta-me destes laços:
Ou faze destes dois um só semblante,
Ou divide meu peito em dois pedaços!





Alvarenga Peixoto
Brasil (Rio Janeiro) 1742? 1744
Angola (Ambaca) 1792
in Cinco Séculos de Poesia, Antoloia de poetas brasileiros
Seleção: Frederico Barbosa
Editora: Landy Editora - Brasil
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Sônia Queiroz: Ensinamento



ensina-me a inocência
olhar o céu e dizer
céu
olhar a noite e dizer
noite
como no tempo da criação
 
ensina-me a procurar nas tardes
a grande bola de fogo
ensina-me a procurar nas noites
o traço fino da lua
o traço firme da lua.





Sônia Queiroz
Brasil (Belo Horizonte) 1953
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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11 de janeiro de 2015

César Leal: Soneto Acrobático I


Que a morte seja leve como a brisa
ou dança de relâmpagos nas águas,
corrida de um corcel apocalíptico
na bruma que circunda nossas mágoas.
Dissolva-me estes olhos o abandono
à sombra que me habita o peito em guerra
e guarda o coração longínquo sono
de flores de em semente inda na terra.
Que a morte exile a vida em mundo incerto:
- distância não medida em comprimento
que para o pensamento o longe é perto
para vós, para nós e tenras plantas
que dão perfume em flor e amor no fruto.


César Leal
Brasil (Saboeiro) 1924-2013
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Ana Luísa Amaral: O exacto curso do rio


Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti

E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela
quinta-feira o dia do amor em vez de ser
na quarta, o erro surge-me gigante,
um peso carregado como Atlas

Por isso é que preciso de lembrar coisas
exactas, como aconteceu tudo; não só
transpor depois  na ficção recolhida, sou eu
que te preciso e dos teus dias
que me foram meus

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei
nesse dia e o que usei no outro, até que horas
tudo, se havia gente ou não
e em que dia. Porque as palavras depois se
reconstroem

O que se disse então torna-se fácil.
Assim dito parece coisa pouca,
lugar comum e
fácil, mas as noites são grandes

e lembrar-te
exactamente,
de uma forma correcta

é-me tão importante
dentro das noites a pensar em ti
sabendo: não te vejo nunca mais.


  
Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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Hilda Hilst: Do Amor XL


Aflição de ser eu e não ser outra,
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu , casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha

Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
( A noite como fera se avizinha ).

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


Hilda Hil st
Brasil (Jaú, São Paulo) 1930-2004
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Cyro Pimentel: Eros Adolescente

Em teu corpo, grito de girassóis,
Rápidos cruzam-se animais celestes.
Atravessa-o um veloz tropel de Eros.
Inundando de cinzas o sangue cintilante.

Nascem no corpo devastado em voos
Abruptos
As vermelhas sombras inoculadas
Na infância - as pétalas
Soltas no ministério de vento fértil.

Nos seus delírios as donzelas
Sonham-se os potros da constelação!
E alucinadas pelo olhar-relâmpago

Da vida, disparam acoitadas pelo
Rebenque terrestre. Marcadas a cornos
De tango, agonizam sob um céu doente...



Cyro Pimrentel
Brasil(São Paulo) 1926-2008
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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10 de janeiro de 2015

Cyro Pimentel: Solenidade


Exorcizados, saem os leopardos da sombra
Do teu corpo.
Cavalos soltos nos prédios selvagens
Voam, submissos à neblina.

Trilham o jardim dos vocábulos,
E fugitivo sob a terra
Segue o rio interior,
Onde em margens de almas e fantasmas
Sobejam os sentidos.

Estrelas feridas pelos céus
As tristes palavras eternas;
E após lutas, lentas mortes, construo -
Alta! a ascendente verdade terrestre.


Afastam-se as feiticeiras do templo
E soberbo no altar de Orfeu tangível
Domino, com a solenidade dos deuses,
Teu corpo adormecido de meninas.


Cyro Pimentel
Brasil (São Paulo) 1926-2008
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Eugénio de Andrade: Apenas um Corpo

Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.

Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

Amorosamente toco o que resta dos deuses.
As mãos seguem a inclinação
o peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.
Aguarda um relampago,
um rio de sol,
outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,
nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.



Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in As Palavras Interditas,
                        Até Amanhã 
Editor: Assirio & Alvim
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Ana Marques Gastão: Amados na hora...


Amados na hora
passageira, curta
são os lugares,
sabores a mel
e tília e a casa
vago repouso
ou morte.
A ti, secreto amor,
devolvo o vento
e o gesto esquecido
na bruma das horas


Ana Marques Gastão
Portugal (Lisboa) 1962
in Nocturnos
Editor: Gótica
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Ana Marques Gastão: Não é o coração


Não é o coração
mas esta carne
em seu rumo.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor

Não é o coração
mas as mãos
seu corpo, vazias

Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desiquílibrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo .


Ana Marques Gastão
Portugal (Lisboa) 1962
in Nocturnos
Editor: Gótica
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Eugénio de Andrade: O Amor


Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inudar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.


Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in Obscuro Domínio
Editor: Assirio & Alvim

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