Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

22 de fevereiro de 2014

Camila Cintra: Arrepios




o beijo nos lábios
arrepia o pescoço

a mão nas tetas
arrepia os mamilos

a língua no grelo
arrepia a espinha

o dedo no cu
arrepia o ventre

o pau na boceta
arrepia até a alma

e teu olhar no meu
arrepia-me como mais nada...


Camila Cintra
Brasil
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Antonio Gamoneda: Amor

























A minha maneira de te amar é simples
aperto-te contra mim
como se houvesse um pouco de justiça no meu
coração e eu ta pudesse dar com o corpo.
Quando revolvo os teus cabelos
algo de belo se forma entre as minhas mãos.

E quase não sei mais nada. Só aspiro
a estar em paz contigo e a estar em paz
com um dever desconhecido
que ás vezes também pesa no meu coração.

                       

Antonio Gamoneda                        
Espanha 1931
in ”Oração Fria”
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Edmund Spenser: Escrevi o nome dela na areia:



Escrevi o nome dela na areia,
Mas as ondas o apagaram logo:
‘screvi outra vez, veio a maré-cheia,
Triste o vi desaparecer de novo.
“Homem vão,” disse ela, “em vão tentando
Imortalizar o que é mortal.
Eu própria a isto chegarei quando
Meu nome se apagar por igual.”
“Não,” disse eu, “o que é vil, é natural
Desfazer-se em pó, tu serás eterna –
Meus versos dar-te-ão um pedestal
Para que teu nome no céu se escreva.
Enquanto a morte vence toda a gente,
Nosso amor nova vida nos dará para sempre"


Edmund Spenser
(England 1552-1599)
 in Os dias do Amor
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Helder Moura Pereira: Curva encurvada, outra direita




Curva encurvada, outra direita.
Uma activa, outra suspeita,
uma mais dada a ser prolongamento,
outra ligada ao forte momento.

Eram bombas de luz a assinalar
o fim, não tenhas pena de já acabar.
A verdade é que tudo pode recomeçar.
A verdade é que já está a começar.

O ganso morto saiu do quadro para a tua mão
e  de olhos nos olhos chamaste-me Sebastião.
As tuas setas tinham mel
a minha boca ficou cheia do teu gel.


Hélder Moura Pereira
Portugal 1949
in “ A tua cara não me é estranha”
Ed. Assírio & Alvim
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Edgar Allan Poe: Um sonho num sonho

Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! Meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?


Edgar Allan Poe
USA 1809-1849
in Antologia de Contos e Poemas
Ed. Veja

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Adília Lopes: Mordiscas-me os lábios

























Mordiscas-me os lábios
cão pássaro rapaz
(não quero que te vás embora
e sei que vais ter que te ir embora)
quero dormir contigo
com a tua mão
sobre o meu coração
para que saibas
os meus segredos
beliscas-me ao de leve
eu sei que não é um sonho
mas é como um sonho
para mim


Adília Lopes
Portugal 1960
in “Dobra – Poesia Reunida”
Assirio & Alvim

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Desfloras-me: Adília Lopes



Desfloras-me
desfloro-te
porque temos flores
um para o outro
o teu ritmo
em mim
sobre mim
tão novo
para mim
é muito antigo
é como o dos animais
ganho a minha virgindade
que te dou
e que não perco
sou sempre virgem
a minha dor
o meu sangue
são a tua dor
o teu sangue


Adília Lopes
Portugal 1960
in “Dobra – Poesia Reunida”
Assirio & Alvim

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21 de fevereiro de 2014

Jorge de Sena: Ó doce perspicácia






























Ó doce perspicácia dos sentidos!
Visão mais táctil que apressados dedos
sempre na treva tropeçando em medos
que só o olfacto os ouve definidos!

Audível sexo, corpos repetidos,
gosto salgado em curvas sem segredos
a que outras acres e secretas - ledos,
tranquilos, finos ásperos rangidos -

se ligam, mancha a mancha, lentamente...
Perfume Túrgido, macio, tépido,
sequioso de mão gélida e tremente...

Vago arrepio que se escoa lépido
por sobre os tensos corpos tão fingidios...
Ó doce perspicácia dos sentidos!


Jorge de Sena
Portugal 1919-1978
in Antologia Poética – Guimarães Editores
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Federico García Lorca: Cacida da mulher deitada


























O ver-te nua é recordar a Terra,
a Terra lisa, limpa de cavalos.
A Terra sem um junco, forma pura
ao futuro cerrada: confim de prata.

Ver-te despida é perceber a ânsia
da chuva a procurar um débil talo,
ou a febre do mar de rosto imenso 
sem encontrar a luz da tua face.

O sangue soará pelas alcovas
e virá com espadas fulgurantes,
mas tu não saberás onde se esconde
o coração do sapo ou a violeta.

Teu ventre é uma luta de raízes,
teus lábios, aurora sem contorno.
Sob as cálidas rosas de uma cama
os mortos gemem esperando turno.


Federico García Lorca
Espanha 1898-1936
in Antologia Poética – Trad. Eugénio de Andrade
Assírio & Alvim
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17 de fevereiro de 2014

Hedylos: Rapariga Seduzida



Embalou-me – era tão inocente –
com vinho e palavras de amor
e todas as juras. Ao acordar
qual não foi a minha surpresa

a seda que cobria os meus seios e o ventre
desaparecera e com ela a minha pureza

deusa lembra-te que estávamos sós
e ele era forte – e eu tão indefesa


Hedylos
Grécia Séc. II a. c.
in Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro
Trad. Jorge Sousa Braga
Assirio & Alvim
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13 de fevereiro de 2014

Mia Couto: Primeira Palavra





Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo


Mia Couto,
Moçambique 1955
in 'Raiz de Orvalho e outros poemas

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Alvaro Giesta: Flutuando, desces ao meu ventre o seio



Flutuando,
desces ao meu ventre o seio
Cobre-lo de beijos e carícias
e minhas mãos ágeis exploram
as tuas coxas sedentas
penetrando entre elas sem receio

Maviosamente cai a noite entre nós
num aconchego de ausência
e ternura
Profundamente a noite é só nossa
numa simbiose de lucidez
e de loucura

Enlaço as minhas mãos nas tuas
nádegas, e os meus dedos
entre elas, de permeio
E tu nas minhas mãos continuas
um abraço sedento e apertado
e no meu ventre explosivo
a massajar teu seio

Subimos os degraus do nosso céu...
Tu e eu no aproximar do nosso inverno...
Descemos num gesto sublime
único e só
às profundezas do êxtase
sem sombras de qualquer inferno.


Autor: Alvaro Giesta
Portugal » Vila Nova Foz Côa 1950
in EROTIMVS, Impulsos e Apelos
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Maria Teresa Horta: Anseio


Não sei se volteio
se rodopio
se quebro

Se tombo nesta queda
em que passeio

Não sei se a vertigem
em que me afundo
é este precipício em que me enleio

Tropeço
desço em mim e neste excesso
o fogo é já cinza no meu seio

Não sei se cair assim
me quebra

me esmaga ou sobrevivo
em busca deste anseio

                               Constança H.


Maria Teresa Horta
Portugal 1937
in A Paixão segundo Constança H.
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