Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de dezembro de 2013

Casa térrea: António Osório

AMO-TE
com pressa
de não acabar o amor.


SÉMEN
que como Deus extravasa
e se repete


DEUS segundo
que gerasse o primeiro
e começasse de novo
pela boca dos mortos


QUANDO sinto de noite
o teu calor dormente
e devagar
digo: cedro azul,
terra vegetal,
ou só
amor, amor;
quando te acaricio
e devagar
para que não despertes
tomo na mão direita
as duas fontes, iguais, da vida,
procuro a nascente4e adormeço
nela essa mão depositando.


António Osório
Portugal 1933
photo by Google 

Escreve! : João de Deus


Não sei o que supor
Do teu silêncio. Escreve!
Quem é amado deve
Ser grato ao menos, flor!

Se eu fosse tão feliz
Que te falasse um dia,
De viva voz diria
Mais do que a carta diz.

Mas olha, tal qual é,
Não rias desse escrito,
Que pouco ou muito é dito
Tudo de boa-fé.

Há nesse teu olhar
A doce luz da Lua,
Mas luz que se insinua
A ponto de abrasar...

Pareça nele, sim,
Que há só doçura, embora,
Há fogo que devora...
Que me devora a mim!

Que mata, mas que dá
Uma suave morte;
Mata da mesma sorte
Que uma árvore que há;

Que ao pé se lhe ficou
Acaso alguém dormindo
Adormeceu sorrindo...
Porém não acordou!

Esse teu seio então...
Que encantadora curva!
Como de o ver se turva
A vista e a razão!

Como até mesmo o ar
Suspende a gente logo,
Pregando olhos de fogo
Em tão formoso par!

Ó seio encantador,
Delicioso seio!
Que júbilo, que enleio,
Libar-lhe o néctar, flor!

Eu tenho muita vez
Já visto a borboleta
Na casta violeta
Pousar os leves pés;

E num enlevo tal,
Numa avidez tamanha,
Que a gente a não apanha
Com dó de fazer mal!

Pegada à flor então
No pé curvinho e mole,
As asas nem as bole
Toda sofreguidão!

Pousou... adormeceu!
Só vê, só ouve e sente
O cálix rescendente
Daquele mel do céu!

Pois vê com que prazer
E com que ardente sede
Te havia... que não hei-de!...
Também beijar, sorver!

Mas eu só peço dó,
Só peço piedade!
Mata-me a saudade
Com duas Unhas só!

Eu, a não ser em ti,
Achar alívios onde?
Escreve-me! responde
A carta que escrevi!

Cansado de esperar
Às vezes quando saio,
Pensas que me distraio?
Pois volto com pesar!

Concentra-se-me em ti
A alma de tal modo,
Que esse bulício todo
Nem o ouvi, nem vi!

Ninguém te substitui
Porque só tu és bela!
Que estrela a minha estrela,
E que infeliz que eu fui!

Mas devo-te supor
Sempre indulgente e boa:
Escreve-me e perdoa
Meu violento amor!

Respeita uma afeição
Inútil mas sincera!
Tu és mulher, pondera
O que é uma paixão.


Com sangue era eu capaz
De te escrever; portanto,
Tinta não custa tanto,
E não me escreverás?

Uma palavra, sim,
Que me não amas... queres?
Enquanto me escreveres,
Tu pensarás em mim!

Só essa ideia, crê,
Encerra mais doçura
Que as provas de ternura
Que outra qualquer me dê!
 

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
photo by Google

Ausência: Augusto Casimiro


Ausência é viver a vida
Longe de nós ... É lembrar
Com a alma adormecida
Pra não sofrer, se acordar.

Ser amado e ser ausente
Pode lá ser?! Pois há quem
Sendo "amado e amando tente
A distância, ornar, o além?

É como andar degredado
Longe da própria ventura,
Ser ausente e ser amado ...

É tomar nas mãos a dor,
Transformá-la em formosura,
Tornar o Amor mais Amor...


Augusto Casimiro
Portugal 1889-1967
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A Mercedes em seu voo: Federico García Lorca



Uma viola de luz hirta e gelada
és agora nas rochas da altura.
Uma voz sem garganta,voz escura
que soa em tudo sem soar em nada.

Teu pensamento é neve resvalada
pela glória infinita da brancura.
Teu perfil é perene queimadura,
teu coração uma pomba desatada.

Canta, canta no ar já sem cadeia,
a matinal fragante melodia,
monte de luz e chaga de açucena.


Que nós aqui em baixo noite e dia
faremos nas esquinas da tristeza
uma grinalda de melancolia.

                             "in Poemas - Trad: Eugénio de Andrade"

Federico Garcia Lorca
Espanha 1898-1936
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27 de dezembro de 2013

Balada da Água do Mar: Federico García Lorca

 

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios do céu.
 
- Que vendes tu, rapariga,
de turvos seios ao ar?
 
- Vendo, senhor, água
do mar.
 
- Que levas tu, jovem negro,
misturado em teu sangue?
 
- Levo, senhor, água
do mar.
 
Essas lágrimas, salobres,
onde te nascem, mãe?

- Choro, senhor, água
do mar.
 
Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?
 
-Amarga muito, a água
do mar.
 
O mar
sorri ao longe.
Dentes de espumas
lábios do céu.
 
Federico García Lorca
Espanha 1898-1936
in Poemas -Tradução: Eugénio de Andrade
Assirio & Alvim
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26 de dezembro de 2013

Epitalâmio XIV : Fernando Pessoa


O noivo anseia pelo fim de tudo isto no cio
De conhecer essas entranhas em chupados sorvos,
De pôr primeira mão nesse cabelo do ventre
E apalpar o fojo labiado,
A fortaleza feita para ser tomada, e pela qual
Sente o aríete engrossar e doer de desejo.
A trémula alegre noiva sente todo o calor do dia
Nesse lugar ainda enclaustrado
Onde a sua virginal mão nocturna fingia
Um vazio lucro de prazer.
E dos outros a maior parte é disto que segredará,
Sabendo o rápido trabalho que é;
E as crianças, que observam com ávidos olhos,
Agora antegozam de saber
Da carne, e com homens e mulheres crescidos fazer
O acto coceguento e líquido
Por cujo sabor em cantos escusos tentam
O que mal sabem como é seco ainda.

Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
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Quando em meu desvelado pensamento: Filinto Elísio

Quando em meu desvelado pensamento
O teu formoso gesto se afigura,
Não sei que afecto sinto, ou que ternura
Que a toda esta alma dá contentamento.

Ali fico num largo esquecimento,
Contemplando na minha conjectura
Do teu serêno rosto a graça pura,
De teus olhos o doce movimento.

Porém logo a inconstante fantasia
Me acorda o entendimento arrebatado,
E desfaz todo o bem que me fingia.


Sendo tal êste gosto imaginado,
Que de amor outra glória eu não queria
Mais que trazer-te sempre em meu cuidado.


Filinto Elísio
Portugal 1734-1819
in Poemas portugueses
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Adelina em Passeio: Federico García Lorca


Não tem laranjas o mar,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo!
Empresta-me o guarda-sol.

Pôr-me-á a cara verde
- sumo de lima e limão -.
Tuas palavras - peixinhos -
nadarão em seu redor.

Não tem mlaranjas o mar.
Ai amor.
Nem Sevilha tem amor!

Federico García Lorca
Espanha 1898-1936
in Poemas  - Assirio & Alvim
Tradução: Eugénio de Andrade
photo by Google

24 de dezembro de 2013

Gazel do Amor Imprevisto: Federico García Lorca

Ninguém compreendia o aroma
da escura magnólia do teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
um colibri de amor entre os teus dentes.

Mil potros persas adormeciam
na praça lunar da tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites
a tua cintura, hostil a neve.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurarei, para te dar, no meu peito
as letras de marfim que dizem sempre.

Sempre, sempre: jardim desta agonia,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial na minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.

Federico García Lorca
Espanha 1898-1936
in Poemas - Assirio & Alvim
Trad. Eugénio de Andrade
photo by Google

23 de dezembro de 2013

Eu sou, mas o que eu sou quem cuida ou sabe?: John Clare



Eu sou, mas o que eu sou quem cuida ou sabe?
Em meus amigos um lembrar perdido.
Gastar as minhas mágoas a mim cabe -
erguem-se e passam num revoar esquecido,
sombras de amor que a própria ânsia esmaga -
mas sou, e vivo - como névoa vaga


lançada ao nada de uma vácua lida,
ao vivo mar dos sonhos acordados,
onde não há qualquer senso da vida,
mas o naufrágio só dos bens passados.
Até os mais caros, meu amor mais fundo,
estranhos me são, ou mais que todo o mundo.


Anseio terras que ninguém pisou,
onde mulher nunca sorriu nem chora,
e onde me unir ao Deus que me criou,
para dormir como na infância outrora -
sem que nenhum cuidado seja meu:
erva por baixo, e acima o curvo céu.


John Clare
England 1793-1864
(in «Poesia de 26 Séculos»
trad. Jorge de Sena

22 de dezembro de 2013

Discreta Súplica: Csokonai Vitéz Mihály


 Do poderoso amor
dói-me fogo consumido.
Podes ser na chaga bálsamo,
formosa breve tulipa.


Teu lindo brilho dos olhos,
fogo vivo da aurora;
de teus lábios o orvalho
mil cuidados me devora.


Dá em tua voz de anjo
o que teu amante roga:
com mil beijos de ambrosia
te pagarei a resposta.

Csokonai Vitéz Mihály
Hungria 1773-1805
(tradução de Ernesto Rodrigues)

Do poderoso amor: Csokonai Vitéz Mihály


Do poderoso amor
dói-me fogo consumido.
Podes ser na chaga bálsamo,
formosa breve tulipa.

Teu lindo brilho dos olhos,
fogo vivo da aurora;
de teus lábios o orvalho
mil cuidados me devora.

Dá em tua voz de anjo
o que teu amante roga:
com mil beijos de ambrosia
te pagarei a resposta.


Csokonai Vitéz Mihály
Hungria 1773-1805
(tradução de Ernesto Rodrigues)

O Pastor Apaixonado para o Seu Amor: Christopher Marlowe


Vem viver comigo e sê o meu Amor,
Todos os prazeres teremos ao dispor,
Os que vales, colinas e campos nos dão,
E as montanhas rochosas sem excepção.

Lá nos rochedos a gente depois se senta,
Enquanto o pastor o rebanho apascenta
Junto de os ribeiros ao som dos quais,
Melodiosas aves cantam madrigais.



E hei-de arranjar-te canteiros de rosas,
Milhares de ramos de flores olorosas,
Uma touca de flores e mais uma saia,
Com folhas de mirto toda à volta bordada.

De a mais pura lã far-se-á um vestido,
Com o fio dos nossos cordeirinhos tecido;
E para o frio, uns sapatos bem forrados,
Com fivelas do mais puro ouro adornados.

Um cinto de palhinha e rebentos de hera,
Com fivelas de coral e botões de âmbar;
E se cada prazer de teu agrado for,
Vem viver comigo e ser o meu Amor.

Cantando e dançando, pastores hás-de ter
Nas manhãs de Maio, para o teu prazer:
Se a isto tua alma não se vai opor,
Então vive comigo e sê o meu Amor.

                                       in Os dias do Amor
Christopher Marlowe
(England 1564-1593)
photo by Google

15 de dezembro de 2013

Os Joelhos: Eugénio de Andrade



Considerai os joelhos com doçura:
Vereis a noite arder mas não queimar
a boca onde beijo a beijo foi acesa.

Eugénio de Andrade
Portugal 1923-2005
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É Duro: Amos Oz



Abre os olhos com os primeiros raioz de luz. A cadeia de montanhas
parece uma mulher serena e vigorosa,
deitada de lado depois de uma noite de amor.
Um vento suave, saciado, agita a aba da tenda.
Que incha e estremece, como um ventre quente. Subindo e descendo.

Com a ponta da língua aflora o côncavo da mão esquerda,
o ponto mais fundo da palma. é como
o toque de um mamilo, suave e duro.

Amos Oz
Israel 1939
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Só: Amos Oz
















Uma seta armada num arco esticado: ele lembra-se do contorno
da coxa dela. Adivinha o movimento os seus quadris em direcção a ele.
Contém-se. Salta para fora do saco cama. Enche os pulmões de ar glacial.
Um nevoeiro pálido, de uma transparência leitosa, vai-se arregaçando,
tal uma  camisa de noite fina sobre o flanco da montanha.

                             in O mesmo mar

Amos Oz
Israel 1939


Meu coração, vós abristes: Cristóvão Falcão


Meu coração, vós abristes
caminho a meus cuidados,
pera virem ser banhados
na ágoa de meus olhos tristes,
tristes, mal galardoados.
Necessário é que vamos
algum remédio buscar
para se a vida acabar:
êste o bem que dessejamos,
êste o nosso desejar


Cristóvão Falcão
(Portugal 1515-1553/57?)
photo by Google



Idílio: Domingos dos Reis Quita




Praias, que banha o Tejo caudaloso:
Ondas, que sôbre a areia estais quebrando:
Ninfas, que ides escumas levantando:
Escutai os suspiros dum saüdoso.

E vós também, ó côncavos rochedos,
Que dos ventos em vão sois combatidos,
Ouvi o triste som de meus gemidos,
já que de Amor calais tantos segredos.

Ai, amada Tircéa, se eu pudera
os teus formosos olhos ver agora,
Que depressa o pesar, que esta alma chora,
No gôsto mais feliz se convertera!

Oh, como então ficaras conhecendo
Quanto te amo, se visses a violência
Com que estão de meus olhos nesta ausência
Estas saüdosas lágrimas correndo!

Tanto neste pesar, que estou sentindo,
O triste coração se desfalece,
e tanto me atormenta, que parece
Que ao sofrimento a alma vai fugindo.

Mas oh, qual há de ser a crueldade
Deste terrível mal, em que ando envolto,
Se a qualquer parte, enfim, que os olhos volto,
Imagens estou vendo de saüdade.

(...)

Domingos dos Reis Quita
Portugal 1728-1770
photo by Google