Quem
há aí que possa o cálix
De
meus lábios apartar?
Quem,
nesta vida de penas,
Poderá
mudar as cenas
Que
ninguém pôde mudar ?
Quem
possui na alma o segredo
De
salvar-me pelo amor?
Quem
me dará gota de água
Nesta
angustiosa frágua
De
um deserto abrasador?
Se
alguém existe na terra
Que
tanto possa, és tu só!
Tu
só, mulher, que eu adoro,
Quando
a Deus piedade imploro,
E
a ti peço amor e dó.
Se
soubesses que tristeza
Enluta
meu coração,
Terias
nobre vaidade
Em
me dar felicidade,
Que
eu busquei no mundo em vão.
Busquei-a
em tudo na terra,
Tudo
na terra mentiu!
Essa
estrela carinhosa
Que
luz à infância ditosa
Para
mim nunca luziu.
Infeliz
desde criança
Nem
me foi risonha a fé;
Quando
a terra nos maltrata,
Caprichosa,
acerba e ingrata,
Céu
e esperança nada é.
Pois
a ventura busquei-a
No
vivo anseio do amor,
Era
ardente a minha alma;
Conquistei
mais de uma palma
À
custa de muita dor.
Mas
estas palmas tais eram
Que,
postas no coração,
Fundas
raízes lançavam,
E
nas lágrimas medravam
Com
frutos de maldição.
Em
ânsias de alma, a ventura
Nos
dons da ciência busquei.
Tudo
mentira! A ciência
Era
um sinal de impotência
Da
vã Razão que invoquei...
Era
um brado, um testemunho
Do
nada que o mundo é.
Quanto
a minha mente erguia
Tudo
por terra caía,
Só
ficava Deus e a fé.
Lancei-me
aos braços do Eterno
Com
o fervor de infeliz;
Senti
mais fundas as dores,
Mais
agros os dissabores...
O
próprio Deus não me quis!
Depois,
no mundo, cercado
Só
de angustias, divaguei
De
um abismo a outro abismo
Pedindo
ao louco cinismo
O
prazer que não achei.
Tristes
correram meus anos
Na
infância que em todos é
Bela
de crenças e amores,
Terna
de risos e flores
Santa
de esperança e de fé.
Assim
negra me era a vida
Quando,
ó luz da alma, te vi
Baixar
do céu, onde outrora
Te
busquei, mão redentora,
Procurando
amparo em ti.
Serás
tu a mão piedosa,
Que
se estende entre escarcéus
Ao
perdido naufragado?
Serás
tu, ser adorado,
Um
prémio vindo dos céus?
E
eu mereço-te, que imenso
Tem
já sido o meu quinhão
De
torturas não sabidas,
Com
resignação sofridas
Nos
seios do coração.
Que
ternura e amor e afagos
Toda
a vida te darei!
Com
que jubilo e delírio,
Nova
dor, novo martírio,
De
ti vindo, aceitarei!
Se
na terra um céu desejas
Como
o céu que eu tanto quis,
Se
d'um anjo a glória queres,
Serás
anjo, se fizeres,
Contra
o destino, um feliz.
Faz
que eu veja nestas trevas
Um
relâmpago de amor,
Que
eu não morra sem que diga:
«Tive
no mundo uma amiga,
Que
entendeu a minha dor.
Deu-me
ela o estro grande
Das
memoráveis canções;
Acendeu-me
a extinta chama
Da
inspiração que inflama
Regelados
corações.
Os
segredos dos afectos
Que
mais puros Deus nos deu,
Ensinou-mos
ela um dia
Que
de entre arcanjos descia
Com
linguagem do céu.
Os
mimosos pensamentos
Que,
de mim soberbo, leio,
Inspirou-mos,
deu-mos ela
Recostando
a fronte bela
Sobre
o meu ardente seio.
Morta
estava a fantasia
Que
o gelo da alma esfriou;
Tinha
o espírito dormente,
Só
no peito um fogo ardente,
Quando
o céu me a deparou.
Agora
morro no gozo
De
uma saudade imortal.
Foi
ditosa a minha sorte;
Amei,
vivi: venha a morte,
Que
morte ou vida é-me igual.
Igual,
sim, que o amor profundo,
Como
foi na terra o meu,
Não
expira, é sempre vivo,
Sempre
ardente e progressivo
Em
perpétuo amor do céu».
Assim,
querida, meus lábios,
Já
moribundos, dirão,
Nas
agonias supremas,
Essas
palavras extremas
Do
meu ao teu coração.
Sabes
quem é, neste mundo,
Quase
igual ao Redentor?
É
quem diz: «Sou adorada
Pela
alma resgatada,
Por
mim, das ânsias da dor.»
Carta a Ana Plácido
Camilo
Castelo Branco
Portugal
1825-1890
in
Obras Completas
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