Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de fevereiro de 2013

CARTA : Fernando Pessoa



Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios.
Trabalhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas
para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te fora ouvir música e atravessar, perdidas ao fundo de outras épocas onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quero para nada senão para te não ter. Queria que sonhando ou se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando -----
nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enche de ( k) os lagos mortos e que os ecos das canções ondeavam subitamente na grande floresta explícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormece, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar às duas margens escuras do rio que vai ter ão ancião onde as caravelas são novas para sempre.
Sorrias? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas.
Olhavas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, passando longínquas marinhas.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do Desassossego de Bernardo Soares

Súplica de Amor : Héctor Rojas Herazo



Pela minha voz endurecida como uma velha ferida;
pela luz que revela e destrói o meu rosto;
pelo marulhar de uma solidão mais antiga que Deus;
por mim atrás e à frente;
por um ramo de avós que reunidos me pesam;
pelo defunto que dorme na minha costela esquerda
e pelo cão que lhe lambe as faces;
pelo uivo da minha mãe
quando molhei as suas coxas com um vómito escuro;
pelos meus olhos culpados de tudo o que existe;
pela deleitosa tortura da minha saliva
quando apalpo a terra digerida no meu sangue;
por saber que me apodreço.
Ama-me.

Héctor Rojas Herazo
(Colombia 1921-India 2002)
in Um País que Sonha - Cem anos poesia Colombiana 

KAVAFIANA : Maria Mercedes Carranza


O desejo aparece de repente,
em qualquer sítio, propósito de nada.
Na cozinha, caminhando pela rua.
Basta um olhar, um aceno, um roçar.
Mas dois corpos
têm também o seu amanhecer e o seu acaso,
a sua rotina de amor e de sonhos,
de gestos sabidos até ao cansaço.
Dispensam-se os risos, deforman-se.
Há cinzas nas bocas
e o íntimo desdém.
Dois corpos têm a sua vida
e a sua morte um frente ao outro.
Basta o silêncio.


Maria Mercedes Carranza
(Colômbia 1945-2003)
in Um país que sonha - Cem anos poesia colombiana
Assirio & Alvim

26 de fevereiro de 2013

Tabacaria: Alvaro de Campos



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888 - 1935)
in Poesias de Álvaro de Campos

19 de fevereiro de 2013

Tu: Eduardo Cote Lamus


Cai a palavra na solidão como um ramo de oliveira
na paz. Eu não sabia
que a tua voz chegaria com estrelas.
és o meu grito de combate
contra a morte.
Agora uma árvore cresce onde o esquecimento
fecha  os olhos.
Tu.

Eduardo Cote Lamus
(Colombia 1928-1964)
in Um país que sonha – Cem anos de poesia colombiana

Os Sinos: Guillaume Apollinaire


Meu belo cigano meu amante
Escuta os sinos a tocar
Perdidamente nos amamos
Crentes que ninguém nos estava a espiar

Mas estávamos mal escondidos
Todos os sinos em redor
Nos viram e espalham agora
Por todo o lado o nosso amor

Cipriano e Henrique amanhã
Maria Úrsula e Catarina
A padeira e o seu marido
E ainda Gertrudes a minha prima

Sorrirão quando passar
Não saberei onde me esconder
Tu estarás longe eu vou chorar
         Ou talvez morrer


Guillaume Apollinaire
(Roma 1880-França 1918)
In O século das nuvens – Ed. Assirio & Alvim 

18 de fevereiro de 2013

Al Berto: Outros Corpos


    corpo envolto por uma linha azul, espessa areia fulva em toda a extensão
da folha de papel nervuras brancas, textura das tintas, risco de lápis
outro corpo na penumbra do olho em pêlos erectos
as marés movem-se na polpa de um sexo, águas avermelhadas reflectem
o fruto incendiado
(eu sei, a verticalidade é a tua posição, mesmo durante o sonho)
mais amarelo vestindo corpos inacabados
um dentro do outro, prolongam-se para além de ti, na luz quase
comestível do amanhecer
afastados um do outro continuam a tocar-se através dum objecto, coisa viva
sem nome ainda
o lápis percorre a folha, num traço surgem os lábios de molusco, concha
aberta no crepúsculo da praia
lábios, boca, dedos alastrando, gesto agitado, flor áspera, mão abrindo-se em pétala
cabelos emaranhados noutros cabelos, linha sulcando o rosto, o peito, a púbis
felpuda que se estende até ao horizonte do mar
noutro espaço, para lá dos corpos, minúsculos pássaros aquáticos povoam a luz, hirtos, estáticos. esperma, pérolas irrequietas, nervosas medusas, circulam à roda de um astro
às vezes apontas um detalhe, enches os brancos do papel
olho tecido no aveludado da alucinação, granulado de sementes, macia pele na
lentidão das maresias
cruzam-se e enleiam-se as linhas
esbatem-se cores, outro corpo de escamas ocupa o espaço
depois, o rosto louco, nocturno, quase vegetal, põe-se a latejar
animal cósmico à deriva pelo sangue, excremento vivo dalgum sonho
antigo, como o voo dos pássaros migradores
sonho oculto na noite das cidades, insónia e delírio, ele avança
corpo translúcido, espelho que te reconhece
sonho do silêncio, marés altas, superfícies povoadas, subitamente, por
um insecto de ouro
uma abelha escondida nos favos de subtis tonalidades sépia
animal fabuloso que se desloca na seiva iluminada dos bosques
um astro explode em mil outros animais, minuciosamente desenhados
inicias a metamorfose, és aqueles animais dourados, aquele astro, aquela
árvore perfurando a noite
caminhas extenuado por entre corpos desfeitos no vento, quase líquidos
e vem a noite que te queima, te inquieta, e continua
escorregam silhuetas pelas húmidas pedras, acesas por dentro
vertiginosos néons revelam a ave morta à entrada duma vulva de água
um peixe de saliva cresce em cada corpo de orvalho, expande-se
...
há dias em que o lápis te foge, resiste como um objecto estranho
persistes, esboças o rosto de cera apercebido no espelho, no fundo
quieto do rio
sorris
o lápis volta a obedecer-te
no rosto abrem-se olhos, flores, águas, cristais, lodos, geometrias, fogos, animais sem nome
que deixas à solta fora de teu corpo, em precária liberdade


Al Berto
(Portugal 1948-1997)

14 de fevereiro de 2013

Beijo-te: Edith Goel

Beijo-te
para saber que existem os corais
no fundo das águas.
E há uma mão
estendida para mim
nas tempestades
do reverso
das mortalhas.

Cavalguemos sem engano
desde a seda dos sexos.

Semeia
o meu destino feliz com a tua música.

Espalha na alvorada
a cor
da minha maternidade sagrada.

Edith Goel
(Argentina 1952)

Vivamos, minha Lésbia, e nos Amemos: Gaio Valério Catulo


Vivamos, minha Lésbia, e nos amemos.
Sem que o que digam murmurantes velhos
Importe para nós mais que uma palha.
Podem morrer e renascer os sóis.
A nós, quando se apaga a breve luz,
Noite é perpétuaque dormir havemos.
Oh dá-me beijos mil, depois um cento,
Depois mais outros mil, e um outro cento.
Depois ainda outros mil, e mais um cento.
Depois quando os milhar's forem já muitos,
Erramos a conta, a não saibamos,
Para que a inveja não nos olhe mal,
Sabendo quanto foi de beijos dado.

Gaio Valério Catulo
(Verona 84a.c.-Roma 54a.c.)

13 de fevereiro de 2013

Visto que talvez nem tudo seja falso: Fernando Pessoa





Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com
o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó (...) o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos.
E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer...
Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que acto humano tem uma cor tão bela como os actos espúrios — (...) que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados do Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram ousá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá.)
Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem dera a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficava, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo (...), — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
In Livro do Desassossego de Bernardo Soares

12 de fevereiro de 2013

Intervalo Doloroso: Fernando Pessoa


  293.  

Como alguém cujos olhos, erguidos de um longo [  ] de um livro, receba 
violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim 
os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência 
de mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e 
correlação dos momentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos 
outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu, entala-me 
entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por
sobre o som das suas palavras, estranho o ser ouvido em mim, a apreço 
forte e certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem 
verdadeiramente, os seus ásperos e complexos modos de serem outras 
pessoas que não variantes da minha.

     Encontro-me então, nestes abismos em que me precipito às vezes, 
desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, 
que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contato desfará em pó.

     Pergunto-me então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que 
pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha 
Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E , ainda que saiba que valeu, 
pesa-me neste momento o sentimento de que não valeu, de que não valerá 
(nunca.)

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
In Livro do Desassossego

9 de fevereiro de 2013

Teu útero, teu óvulo, tua boca: Armando Silva Carvalho

Teu útero, teu óvulo, tua boca
de vergonhas brancas.
Dissoluto no ouro o meu sexo muda
facilmente de classe.
Precisa de navegar.
Farejo curioso a teus pés de cama
uma casaca negra um peitilho
de goma as meias rotas
de sede.
Sinto-me nervoso e destemido
ao viajar em ti nave
de crepes
meu leito de margens sórdidas
para todo o sangue.
As narinas de Scorpius fazem do teu espaldar
o espelho revelador.
Cabeça que descai no acto de sofrer.
Almofada plúmbea, amor
lançado ao ar,
sobre os nossos corpos.


Armando Silva Carvalho
(Portugal 1938)
in O que foi passado a limpo (Obra Poética)

Adolescente: Armando Silva Carvalho

A íntima cruzada da sua alma dispersa,
o sangue
insuportável, possuíam-no.
E era como um coro, rouco, gregoriano,
esse cavalgar perdido no deserto, esse amalgamar
de cruéis erros de cálculo, de posses
repetidas pela insónia.

Testava o tamanho do seu membro
como quem pretende contratar para si a morte
ou temia esse glandular inflado do desejo
nas sevícias da infância,
no corpo que cresce e só se repete na noite
numa fala só, isolada do mundo.

Tornado que foi público
o seu acesso ao sexo, a sua forma de estar por entre
a gente e nesse estranho lume caldeado,
tornaram-se os testículos
em sinais de fogo que pouco a pouco
se cobriam de água, impura,
magoada.

E depois disso, diz-se, nunca mais sorriu.


Armando Silva Carvalho
(Portugal 1938)
in O que foi passado a limpo (Obra Poética)

7 de fevereiro de 2013

A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova: Fernando Pessoa


301.

A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova.
Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira,
e sentires-te de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.
Mudar de alma. Como? Descobre-o tu.
Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Não descer nunca a fazer conferências para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser que nos leia.
De mais a mais o conferenciador semelha actor — criatura que o bom artista despreza, 
moço de esquina da Arte.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
In Livro do Desassossego de Bernardo Soares

Para a sua Musa: Miguel Torga



Não queiras vir ao palco dos meus versos.
Revelar o teu nome era trair-te.
Nos bastidores, discreta,
Nenhuma glória poderá fugir-te,
Mesmo que fuja a glória do Poeta.

A terra és tu, e o lavrador é ele.
Deixa-o mostrar os frutos que tu deste.
Só na eterna penumbra do silêncio
Crescem mistérios e religiões.
O devoto só crê
E só leva orações
Aos deuses que não palpa e que não vê.


Miguel Torga
(Portugal 1907-1995)

5 de fevereiro de 2013

Poema dos Olhos da Amada: Vinícius de Moraes




Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe dos breus...

.Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...
Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas era
Nos olhos teus.
Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.

Vinícius de Moraes
(Brasil 1913-1980)

Vazio: Vinícius de Moraes


A noite é como um olhar longo e claro de mulher.
Sinto-me só.
Em todas as coisas que me rodeiam
Há um desconhecimento completo da minha infelicidade.
A noite alta me espia pela janela
E eu, desamparado de tudo, desamparado de mim próprio
Olho as coisas em torno
Com um desconhecimento completo das coisas que me rodeiam.
Vago em mim mesmo, sozinho, perdido
Tudo é deserto, minha alma é vazia
E tem o silêncio grave dos templos abandonados.
Eu espio a noite pela janela
Ela tem a quietação maravilhosa do êxtase.
Mas os gatos embaixo me acordam gritando luxúrias
E eu penso que amanhã...
Mas a gata vê na rua um gato preto e grande
E foge do gato cinzento.
Eu espio a noite maravilhosa
Estranha como um olhar de carne.
Vejo na grade o gato cinzento olhando os amores da gata e do gato preto
Perco-me por momentos em antigas aventuras
E volto à alma vazia e silenciosa que não acorda mais
Nem à noite clara e longa como um olhar de mulher
Nem aos gritos luxuriosos dos gatos se amando na rua.

Vinícius de Moraes
(Brasil 1913-1980)