Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

9 de junho de 2012

Adoramos a perfeição porque não... : Fernando Pessoa



287.
          Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugná-la-íamos, se
a tivessemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.
          O ódio surdo ao paraíso - o desejo como o da pobre infeliz de [ que ]
houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstracto, nem as mara-
vilhas do absoluto, que podem encantar uma alma que sente: são os lares e
as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através
de árvores e as longas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as
nunca tenhamos. Se não houver terra no céu mais vale não haver céu. Seja
então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.
          Para poder obter a perfeição, fora precisa uma frieza de fora do homem;
e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.
          Pasmamos, adorando,da tenção para o o perfeito dos grandes artistas.
Amamos a sua aproximação do perfeito, porém amamos porque é só
aproximação.

Fernando Pessoa                                                            
(Portugal 1888-1935)                                                   
 in Livro do Desassossego de Bernardo Soares

Ausência: Daniel Faria


Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala 

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Daniel Faria                                                                                  in Poesia
(Portugal)                                                                                Assirio & Alvim

7 de junho de 2012

Junta as mãos põe-as entre as minhas: Fernando Pessoa
























328.
       Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me ó meu amor.
Eu quero, falando uma voz suave e embaladora, como a dum 
confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir
fica aquém do que atingimos.
       Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania
da desesperança.



Fernando Pessoa in Livro do Desassossego - Assirio & Alvim                              Excerto
(Portugal 1888-1935)
Foto Google

Fala entre as pernas: Armando Silva Carvalho


1.
Os deuses - como ve-los?
A mão sabe o latim e perdoa-vos tudo.
Eu olho a mão, de pé.
A vossa mão acesa no  calcanhar  da fé.
Mas vós, vibrai no vácuo.
Que a tarde  é terna e solta um animal
a morder-me a boca
Palavra musculada que ao penetrar
- sufoca.


2.
Sugai de cor essas pernas que gritam:
arcos de pó: de pé!
E o penis ressuscitam.
Tomai e comei o meu olhar em sangue.
Esta crina de putas
a rir - de fabulosas.
Lambei as patas quentes das aves sinuosas
As viciosas plumas que estremecem
nos lábios imbecis da vossa dor em fuga.


3.
Abri bem essa boca ao som rugoso
que me sai da boca.
Ao que sobe da língua
para pisar-me o sexo.
Sofrei  comigo - ó monstros
com todos os vossos poros
abertos no incesto.


4.
Deixai vir a mim os sequiosos.
Pelas amplas carnações alucinantes.
Pela lama lânguida
dos verbos esplendorosos.
Com a língua - fímbria
nas arestas da carne.
Assim dentro do ócio.
Até ao ossso.


Armando Silva Carvalho                                                                     in O que foi passado a limpo 
(Portugal 1938                                                                                 (Obra Poética) - Assirio & Alvim
Foto Google                                                                                                              

2 de junho de 2012

Arte Poética: Daniel Faria


A palavra despe-se
O silêncio despe-se

Nus
Os sexos ardem

Os seios da palavra
Os músculos do silêncio

O silêncio
E a palavra

O poeta
E o poema




Daniel Faria in Poesia (Assirio & Alvim)                                                                                                                                          
(Portugal 1971-1999)                                                                                                                                                                                                                              
Foto Google                                                                                       

Conselhos às mal-casadas: Fernando Pessoa


(As mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras.)

             Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo
é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinalmente, pensando em vosso bem-estar,
pobres mal-casadas.

             A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível,
deixando ao corpo, que se submeta à vontade.
        Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter porém contactos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos [ ]  ̶  eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse. Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a idéia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.

Fernando Pessoa                                                                              in Livro do Desassossego
(Portugal 1888-1935)                                                                            Assirio & Alvim
Foto Google