Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de setembro de 2011

Sete sonetos de visão perpétua: Jorge de Sena


E, todavia, eu não quisera amar-te.
Mas ter-te, sim de todas as maneiras.
Quem és e como és, de quem te abeiras,
que dizes ou não dizes, pouco importa.

E muito menos hoje me conforta.
Neste sorriso que te dou tranquilo,
eu ponho num remorso tudo aquilo
que em fundo amor eu pudera dar-te,

se alguma vez te amasse de amor fundo
senta-te à luz do mar, à luz do mundo,
como na primeira vez em que te vi,

tão jovem, que era crime contemplar-te.
E despe-te outra vez, pois vem olhar-te
Quantos te buscam de saber-te aqui.

 Sendo um de tantos, nunca te perdi.


Jorge de Sena
(Portugal 1919-1978)
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De tarde: Cesário Verde

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois em cima duns penhascos,
Nós acampamos, ainda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvazia.
Mas, todo o púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde
(Portugal 1855-1886)

Dorme sobre o meu seio: Fernando Pessoa

Dorme sobre o meu seio
Sonhando de sonhar…
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O  ‘spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,


Sem mágoa nem amor…

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada – ser
De vida e gozo e dor


in Fernando Pessoa - Poesias
(Portugal 1888-1935)
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Primeiro a tua mão sobre o meu seio: Rosa Lobato de Faria


Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que não se invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansando no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato de Faria
(Portugal 1932-2010)
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Recordação: Emily Bronte


Frio na terra – e sob tanta neve
Tão longe estás na tumba desolada!
De amar-te esqueci, sequer de leve,
Pelas águas do tempo separada?

Quando estou só, minh’alma não responde
Voando aos montes dessa costa do norte.
Nem fecha asas onde o verde esconde
Teu nobre coração dentro da morte?

Frio na terra – e quinze invernos foram
Aí, nos pardos montes, Primavera:
Fiel é uma alma que as lembranças douram
Após tanta mudança que sofrera!

Ó doce Amor, perdoa, se eu te esqueço.
Ida que vou nesta maré do mundo;
Desejos me distraem, que aborreço,
Mas nenhum deles é que tu mais fundo.

Que luz brilhou no meu azul celeste,
Ou nova aurora para mim raiou?
O bem da vida é o bem que tu me deste,
O bem da vida em ti se consumou.

Mas quando de áureos sonhos suou o regresso
E já nem Desespero me vencia,
Eu aprendi como o existir tem preço,
E quanto val’viver sem alegria.

E as lágrimas sequei do amor inútil –
Calei minh’alma de por ti ansiar,
E dura lhe neguei esse ardor fútil
De em tumba mais que minha me deitar.

E enlanguescer não ouso mais agora,
Nem dar-me à dor extasiada de lembrar-te:
Bebi de mais divina angústia outrora –
Em que vazio mundo hei-de encontrar-te?

Emily Bronte
(England 1818-1848)
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Aqueles olhos que eu deixei chorando: António Ferreira


Aqueles olhos qu’eu deixei chorando,
cujas fermosas lágrimas bebia
Amor, com as suas tendo companhia,
ante os meus se me vão representando.

Os saudosos suspiros qu’arrancando
duas almas, em qu ña troca Amor fazia,
qu’ a que ficava era a que partia
e a que ia a ficava acompanhando;
aquelas brandas mal pronunciadas
palavras de saudosa despedida,
entre lágrimas rotas, e quebradas;

e aquelas alegrias esperadas
da boa tomada já antes da partida;
vivas as trago não representadas.

In António Ferreira  - Poemas Maternos
(Portugal 1528-1569)
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Pablo Neruda: Posso escrever os versos mais tristes


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Posso escrever, por exemplo: “ A noite está estrelada,
e os astros, azuis, tiritam na distância!

Gira o vento da noite pelo céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Tanto a amei, e às vezes ela também me amou.

Em noites como esta eu a tive entre os braços.
Beijei-a tantas vezes debaixo do céu infinito.

Ela me amou, e às vezes eu também a queria.
Ah, como não amar os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E cai o verso na alma como na relva o orvalho.

Que importa que meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Bem longe alguém canta. Lá longe.
Minha alma não se conforma com havê-la perdido.

Como para trazê-la meu olhar a procura.
Meu coração a busca, ela não está comigo.

A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Mas nós, os de outrora, já não somos os mesmos.

Já não a quero, é certo, porém quanto a amei.
Minha voz ia no vento para roçar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a quero é certo. Mas talvez ainda a queira.
Como é tão breve o amor. Tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,
Minha alma não se conforma em havê-la perdido.

Ainda que seja esta a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.
In Pablo Neruda - (Veinte poemas de amor y una cancion desesperada)
(Chile 1904-1973)
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Amor sádico: Emily Bronte



Já não te amava, sem que meu desejo
fugisse à sombra do teu amor distante.
Já não te amava, e contudo o beijo
de uma repulsa nos uniu num instante…
Acre prazer tornou-me seu possesso,
crispou-me a face, mudou meu semblante.
Já não te amava e turbei-me, não distante,
qual virgem num bosque espesso.
E já perdida para sempre, ao ver-te
amanhecer sob o eterno luto,
- mudo o amor, o coração inerte -,
atroz, esquivo, rigoroso, hisurto…
Jamais vivi como naquela morte,
jamais te amei como num tal minuto!







Emily Bronte
(England 1875-1910)
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Pensei morrer: Pablo Neruda

Pensei morrer, senti de perto o frio,
e de quanto vivi só a ti eu deixava:
tua boca era o meu dia e minha noite terrestres
e a tua pele a república fundada por meus beijos.
Nesse instante acabaram os livros,
a amizade, os tesouros sem trégua acumulados,
a casa transparente que tu e eu construímos:
tudo deixou de ser, menos os teus olhos.
Porque o amor, enquanto a vida nos acossa,
é simplesmente uma onda alta sobre as ondas
mas ai quando a morte nos vem tocar à porta
só existe o teu olhar para tanto vazio,
só a tua claridade para não seguir sendo,
somente o teu amor para encerrar a sombra.

in Pablo Neruda - Cien sonetos de amor e una canción desesperada
(Chile 1904-1973)

27 de setembro de 2011

Lord Byron: Estâncias para a música



Muita mulher tem beleza,
Nenhuma a tua magia;
E a tua voz tal riqueza,
Que nem a da melodia
Por sobre as águas do mar:
Quando, num encantamento,
Sonhando adormece o vento
E a onda para um momento
E desfalece a brilhar…
E a lua no céu fiando
A sua teia, a sorrir;
E o mar brandamente arfando
Qual criancinha a dormir;
Assim, dentro da minha alma,
Eu me inclino, ao encontrar-te,
Me suspendo, a escutar-te,
Me curvo para adorar-te:
Com funda emoção, mas calma.

Lord Byron
(England 1788-1824)
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